29.11.10

Vale a pena?

E o tempo passou. A velocidade e o fôlego disparado dos dias cheios de vida ficaram para trás. Lembranças perderam gradualmente as cores e as suas formas tornaram-se escravas da imaginação, adaptando-se, perdendo a confiabilidade.

Vendo a cara murcha no espelho, a testa prolongada rumo à nuca, as orelhas amolecidas e o nariz cada dia mais desproporcionalmente grande na cara, não pode recordar a sensação de segurança e auto-confiança com que exibia o belo rosto nos idos dias da juventude. Sabe difusamente que havia essa boa impressão quando uma menina lançava acanhada um olhar cruzado e admirado da sua beleza e da sua pose. Mas a exata emoção que sentia então estava agora além de qualquer resgate.

Era um rapaz peculiar. Não só na forma audaz do rosto e na compleição física pouco comum. Mas na postura altiva e no olhar direto, conquistados a duras penas através dos anos de adolescência em que se analisara minuciosamente em busca de aperfeiçoamento espiritual. Sobre o pequeno monte dos trinta anos vividos ele não podia ser considerado um sábio, mas certamente acumulara experiências e reflexões suficientes para destacar-se na multidão.

Contraditoriamente, foi a mesma  peculiaridade que tornou-se mãe de outros trinta anos de contínuo aprofundamento de um grande isolamento social. A delicadeza o afastou dos homens. A sensibilidade, das festas, a honestidade, das mulheres e, por fim, a liberdade o afastou do convívio social.

Agora percebendo-se enfim tão distante do que considerava seus momentos de glória - parceiro apenas de livros e reflexões solitárias - não consegue encontrar também o arrependimento.

Em outra oportunidade de ser alguém, ele seria, sem dúvida, ele mesmo. Nenhum momento perdido vale os anos vividos com a certeza de ter estado honestamente em busca do aperfeiçoamento pessoal e coletivo. O amargo da incompreensão e da própria incapacidade seriam vastamente superados pelo salgado da covardia. Irremediavelmente velho, indubitavelmente só, o cano curto pressionando a têmpora não chega a ser uma decisão. É apenas a avaliação objetiva de uma possibilidade.

Olhos nos olhos refletidos. Depõe a arma carregada sobre a pia do banheiro.

Placidamente, lava o rosto, escova os dentes e vai sentar-se na varanda, a comer uma maça cortadinha em pequenos pedaços. O dia amanhece outra vez.

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