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3.11.12
À intelectualidade
Dizem que já temos personalidade aos sete anos de idade. Então essa gente - que dedica uma vida debruçada em livros de outras gentes - no fundo só quer provar por A mais B que a avó deles é quem estava com a razão.
28.10.12
Irmãos
Não sei de onde nem porque
mas saí do nosso abraço
com estranhamento.
A despeito do bom encaixe de braços e costelas e ombros,
faltava um beijo ou sobravam medos.
Talvez o contrário, mas acho que não.
Essa maldita distância entre irmãos:
todos nós tão iguais em nosso medo de ser um só.
mas saí do nosso abraço
com estranhamento.
A despeito do bom encaixe de braços e costelas e ombros,
faltava um beijo ou sobravam medos.
Talvez o contrário, mas acho que não.
Essa maldita distância entre irmãos:
todos nós tão iguais em nosso medo de ser um só.
8.9.12
Amar só
Como deixar todos os amores pelo amor de um só?
Uma personalidade tem só um ínfimo do carinho todo do mundo.
Como saber o sabor d'uma alma se só essa alma te alimenta?
A língua desaprende a degustar se sente sempre um gosto só.
Amar só uma pessoa só não é amar.
27.1.12
A caminho do fascismo canarinho
Aqui havia o índio. Quando chegaram os europeus, trataram logo de matar e estuprar aquele povo que consideravam sem alma e vagabundo. Nascia o primeiro preconceito de que temos notícia nessas terras. O bugre, vagabundo e imprestável, depois de dizimado, foi relegado ao esquecimento.
Ávidos, os civilizados portugueses passaram a trazer para cá homens africanos. Vagabundos e sem alma, mas muito resistentes, fora escravizados, estuprados e humilhados. Esses crioulos, macacos, escurinhos, tições, serviram por séculos ao enriquecimento da coroa portuguesa que enriquecia a coroa inglesa que decidiu, lá no século dezenove, era hora de acabar a escravidão.
Liberto, o povo de cabelo ruim foi expulso aos montes da lavoura e acabaram nas cidades. Esses novos vagabundos - que já tínhamos esquecidos os índios, tão poucos agora -, sem trabalho, desocupados, acabaram nos entornos urbanos, escurecendo até hoje a paisagem das grandes cidades.
Trouxemos então os italianos, espanhóis, alemães! Com grandiosidade inédita, importávamos gente branca e européia para trabalhar. Foi a primeira vez que o Brasil pensou-se poder ser potência mundial, mas é curioso que contra essa gente de pele alva, fomos incapazes de criar apelidos e chacotas. Talvez pela semelhança deles com a imagem branca de olho azul do cristo dependurado na cruz, talvez porque já tivéssemos aprendido naquela época que feio é não ser da Europa.
Ficamos então com uma sociedade que parecia as capitanias hereditárias: por herança ficavam os brancos invasores, donos de fábricas e terras, com o melhor naco da riqueza, em seguida, também com sangue europeu, os brancos importados, trabalhadores assalariados nas grandes cidades. No meio do caminho, a gente parda com os empregos de serviçal. Lá no fim, os negros bem escuros, esses que se virem, sem emprego e a caminho da cadeia.
Eis que no nordeste do país achamos uma raça amarela de olhos azuis de holandês, estatura de bugre, pele de negro e de sabe deus mais o quê. O nordestino, a baianada, os cabeça chata, os paraíba, vieram para agregar-se na pirâmide social brasileira. Ficando em algum lugar acima dos negros e abaixo dos brancos europeus, mas com destaque no vocabulário jocoso do sudeste. A verdade é que até hoje, resumimos toda essa gente ignorante com o nome de um estado só. A baianada!
No Brasil, cresci aprendendo que os negros são vagabundos, os nordestinos ignorantes, os índios coitadinhos e os santos todos europeus. O mais curioso é que na história racial do Brasil não aparece a mais óbvia das nacionalidades: o brasileiro é sujeito oculto ou não existe. Esse país foi parido pela invasão de um povo que não está mais aqui e que nos ensinou o mal hábito de criar preconceitos para facilitar a dominação.
Aprendemos que a culpa é do pretinho, porque é vagabundo e ladrão, do nordestino porque é ignorante e sujo. Mas nunca olhamos com ódio para a burguesia branca na televisão. É muito mais fácil e habitual encontrar um inimigo entre nós.
Agora, o Brasil passa de novo pela estúpida febre de ser um entre os grandes do mundo. Cada vez mais nos parecemos com o país de George Bush, compramos carros, roupas, garrafas de água e eletrônicos como se não houvesse amanhã. Importamos novas nacionalidades: bolivianos, coreanos, árabes e para eles, importamos dos EUA, novos preconceitos. Até os negros e nordestinos tem a quem achincalhar agora. Sorte dos donos brancos do país, que continuam ilustres e impávidos no brasão nacional.
O que me assusta é que em um país sem nacionalidade, onde somos todos invasores ou invadidos, possamos acreditar na ideia ridícula de fronteiras nacionais, ou de defesa dos empregos "para brasileiros". Me dói na boca do estômago um amigo negro odiando os bolivianos ou um amigo nordestino odiando os negros. É triste que as aulas de história européia não sirvam para nos ensinar como começa o caminho do nazi-fascismo e que já estejamos nos adiantando nele.
Quem aqui nesta terra pode se dizer brasileiro? Talvez, e acho que nem assim, um índio descendente das primeiras tribos, de sangue puro pudesse reclamar o direito de preservar os empregos do país para seu povo e nós teríamos todos que voltar, para a Europa, a África, o Oriente e a Ásia, onde não seríamos mais aceitos. Para eles, somos agora brasileiros, um povo de prostitutas e bandidos, que vai estar invadindo e roubando empregos deles. E um viva ao Bolsonaro!
Ávidos, os civilizados portugueses passaram a trazer para cá homens africanos. Vagabundos e sem alma, mas muito resistentes, fora escravizados, estuprados e humilhados. Esses crioulos, macacos, escurinhos, tições, serviram por séculos ao enriquecimento da coroa portuguesa que enriquecia a coroa inglesa que decidiu, lá no século dezenove, era hora de acabar a escravidão.
Liberto, o povo de cabelo ruim foi expulso aos montes da lavoura e acabaram nas cidades. Esses novos vagabundos - que já tínhamos esquecidos os índios, tão poucos agora -, sem trabalho, desocupados, acabaram nos entornos urbanos, escurecendo até hoje a paisagem das grandes cidades.
Trouxemos então os italianos, espanhóis, alemães! Com grandiosidade inédita, importávamos gente branca e européia para trabalhar. Foi a primeira vez que o Brasil pensou-se poder ser potência mundial, mas é curioso que contra essa gente de pele alva, fomos incapazes de criar apelidos e chacotas. Talvez pela semelhança deles com a imagem branca de olho azul do cristo dependurado na cruz, talvez porque já tivéssemos aprendido naquela época que feio é não ser da Europa.
Ficamos então com uma sociedade que parecia as capitanias hereditárias: por herança ficavam os brancos invasores, donos de fábricas e terras, com o melhor naco da riqueza, em seguida, também com sangue europeu, os brancos importados, trabalhadores assalariados nas grandes cidades. No meio do caminho, a gente parda com os empregos de serviçal. Lá no fim, os negros bem escuros, esses que se virem, sem emprego e a caminho da cadeia.
Eis que no nordeste do país achamos uma raça amarela de olhos azuis de holandês, estatura de bugre, pele de negro e de sabe deus mais o quê. O nordestino, a baianada, os cabeça chata, os paraíba, vieram para agregar-se na pirâmide social brasileira. Ficando em algum lugar acima dos negros e abaixo dos brancos europeus, mas com destaque no vocabulário jocoso do sudeste. A verdade é que até hoje, resumimos toda essa gente ignorante com o nome de um estado só. A baianada!
No Brasil, cresci aprendendo que os negros são vagabundos, os nordestinos ignorantes, os índios coitadinhos e os santos todos europeus. O mais curioso é que na história racial do Brasil não aparece a mais óbvia das nacionalidades: o brasileiro é sujeito oculto ou não existe. Esse país foi parido pela invasão de um povo que não está mais aqui e que nos ensinou o mal hábito de criar preconceitos para facilitar a dominação.
Aprendemos que a culpa é do pretinho, porque é vagabundo e ladrão, do nordestino porque é ignorante e sujo. Mas nunca olhamos com ódio para a burguesia branca na televisão. É muito mais fácil e habitual encontrar um inimigo entre nós.
Agora, o Brasil passa de novo pela estúpida febre de ser um entre os grandes do mundo. Cada vez mais nos parecemos com o país de George Bush, compramos carros, roupas, garrafas de água e eletrônicos como se não houvesse amanhã. Importamos novas nacionalidades: bolivianos, coreanos, árabes e para eles, importamos dos EUA, novos preconceitos. Até os negros e nordestinos tem a quem achincalhar agora. Sorte dos donos brancos do país, que continuam ilustres e impávidos no brasão nacional.
O que me assusta é que em um país sem nacionalidade, onde somos todos invasores ou invadidos, possamos acreditar na ideia ridícula de fronteiras nacionais, ou de defesa dos empregos "para brasileiros". Me dói na boca do estômago um amigo negro odiando os bolivianos ou um amigo nordestino odiando os negros. É triste que as aulas de história européia não sirvam para nos ensinar como começa o caminho do nazi-fascismo e que já estejamos nos adiantando nele.
Quem aqui nesta terra pode se dizer brasileiro? Talvez, e acho que nem assim, um índio descendente das primeiras tribos, de sangue puro pudesse reclamar o direito de preservar os empregos do país para seu povo e nós teríamos todos que voltar, para a Europa, a África, o Oriente e a Ásia, onde não seríamos mais aceitos. Para eles, somos agora brasileiros, um povo de prostitutas e bandidos, que vai estar invadindo e roubando empregos deles. E um viva ao Bolsonaro!
20.1.12
Cuidado macaco!
Cuidado macaco!
Fizeste essa tosca ferramenta de osso e começaste tua incursão na consciência - subiste na corda bamba do pensar que dá no indivíduo a vontade de ter importância.
Olha pra nossa humanidade. Estamos no meio do trajeto criativo. Muito longe da saída, mas nem vemos ainda a chegada. Aqui é onde balança mais a travessia. Se se arrebenta a linha tênue do pensar, pode ser que nem cheguemos do lado de lá.
Antes de polir tuas pedras e se arriscar na solidão, vê primeiro que bicho dá nossa tentativa evolutiva.
Espera macaco!
Fizeste essa tosca ferramenta de osso e começaste tua incursão na consciência - subiste na corda bamba do pensar que dá no indivíduo a vontade de ter importância.
Olha pra nossa humanidade. Estamos no meio do trajeto criativo. Muito longe da saída, mas nem vemos ainda a chegada. Aqui é onde balança mais a travessia. Se se arrebenta a linha tênue do pensar, pode ser que nem cheguemos do lado de lá.
Antes de polir tuas pedras e se arriscar na solidão, vê primeiro que bicho dá nossa tentativa evolutiva.
Espera macaco!
11.1.12
Resposta a uma mulher moderna
Querida mulher moderna inconformada que não entende o que deu errado,
O erro está na incompletude de vocês mulheres semi modernas que são sim mais inteligentes, vividas e sagazes, mas ainda só se sentem completas com uma figura masculina potente ao seu lado (coisa de Freud, relação com o pai etc). A verdade é que essa figura não existe. O machismo também afeta os homens. Nós somos tão frágeis quanto as mulheres, nos ferimos e temos muito muito medo de tudo, especialmente de não conseguirmos realizar tudo que a sociedade espera e encuca na nossa mente desde a infância (homem não chora, homem tem que ser comedor, tem que ganhar bem e dominar a mulherada, tem que ser superior e imbatível).
Não somos assim, ninguém é "macho", isso é uma figura mítica que nos obrigam inconscientemente a perseguir. O resultado é que passamos boa parte da vida fingindo que somos, fazendo a personagem do homem boa pinta pegador e, na hora da verdade, quando as mulheres de hoje, menos sonsas e menos frágeis, se colocam à nossa frente, vemos que elas estão exatamente no nosso patamar, que não podemos dominá-las nem sobrepujá-las e, pior de tudo, é justo isso que elas esperam que façamos, consciente ou inconsciente, a mais moderna das mulheres morre de prazer num homem dominador. E é aí que as meninas sonsas, aquelas primas do interior sem vivência e sem sabor se tornam nosso maior deleite, pois nelas podemos montar para sermos finalmente aquilo tudo que nossos pais, a televisão e vocês, mulheres modernas, esperam de nós.
Se você quer um homem pra ficar do teu lado, pra te fazer mais feliz, queira um parceiro, não um homem forte, mas um frágil que chore contigo quando se sentir perdido e que saiba te dar ombro quando você precisar. Ensine-o a lidar com o teu tesão descabido nos machos sarados dominadores enquanto tenta aprender a lidar com o tesão dele nas santinhas sonsas do interior, sejam dois seres humanos e não homem e mulher. Talvez, aí você encontre alguém pra te acompanhar por alguns anos e te garanto que mesmo que demore pra acontecer, vai ser uma linda relação.
O erro está na incompletude de vocês mulheres semi modernas que são sim mais inteligentes, vividas e sagazes, mas ainda só se sentem completas com uma figura masculina potente ao seu lado (coisa de Freud, relação com o pai etc). A verdade é que essa figura não existe. O machismo também afeta os homens. Nós somos tão frágeis quanto as mulheres, nos ferimos e temos muito muito medo de tudo, especialmente de não conseguirmos realizar tudo que a sociedade espera e encuca na nossa mente desde a infância (homem não chora, homem tem que ser comedor, tem que ganhar bem e dominar a mulherada, tem que ser superior e imbatível).
Não somos assim, ninguém é "macho", isso é uma figura mítica que nos obrigam inconscientemente a perseguir. O resultado é que passamos boa parte da vida fingindo que somos, fazendo a personagem do homem boa pinta pegador e, na hora da verdade, quando as mulheres de hoje, menos sonsas e menos frágeis, se colocam à nossa frente, vemos que elas estão exatamente no nosso patamar, que não podemos dominá-las nem sobrepujá-las e, pior de tudo, é justo isso que elas esperam que façamos, consciente ou inconsciente, a mais moderna das mulheres morre de prazer num homem dominador. E é aí que as meninas sonsas, aquelas primas do interior sem vivência e sem sabor se tornam nosso maior deleite, pois nelas podemos montar para sermos finalmente aquilo tudo que nossos pais, a televisão e vocês, mulheres modernas, esperam de nós.
Se você quer um homem pra ficar do teu lado, pra te fazer mais feliz, queira um parceiro, não um homem forte, mas um frágil que chore contigo quando se sentir perdido e que saiba te dar ombro quando você precisar. Ensine-o a lidar com o teu tesão descabido nos machos sarados dominadores enquanto tenta aprender a lidar com o tesão dele nas santinhas sonsas do interior, sejam dois seres humanos e não homem e mulher. Talvez, aí você encontre alguém pra te acompanhar por alguns anos e te garanto que mesmo que demore pra acontecer, vai ser uma linda relação.
30.9.11
Desejo Machista
O machismo tirou de mim o direito de seduzir. Em cada toque, eu estupro. Em cada olhar, eu oprimo. Tendo ensinado que as mulheres não têm direito ao prazer, transformou meu interesse em usura e meu desejo em consumo. Capitalizado, meu tesão recua e me acabo na mão.
13.9.11
Circo Tímido
Na madrugada de qualquer grande cidade, vaga uma trupe silenciosa.
Vão calados, uma dezena de homens. Negros, porque escura é a noite. Negros, porque tal como escravos de correntes ao pescoço, trabalham sem conversar. Homens diferentes, uniformizados pela roupa verde de faixas florescentes e pelo silêncio. O cortejo segue.
Os homens da trupe andam com a mesma face contida dos trabalhadores de túmulos, que impassíveis cimentam o morto numa pequena parede do esquecimento. Trabalham com o mesmo respeito pelo sono alheio - aquele eterno, esse cotidiano.
Enquanto dormem atrás das janelas os cidadãos de bem, metade da trupe mórbida bate as enxadas na guia das calçadas e mata as jovens ervas que crescem ali. A outra metade, leva vassouras e arremata o serviço apagando os próprios vestígios, escondendo em sacos pretos as marcas da passagem desse circo de suor.
Assim, na manhã seguinte, perdida a luz da lua, o cidadão de bem não nota que algo mudou. Talvez, inconsciente na pressa, sinta algo mais organizado no quadro repetido da mesma rua em que sempre dorme e sempre acorda, mas jamais capaz de dizer que o estranho circo tímido tenha feito sua passagem.
Só que hoje eu acordei. Guiado pelo batuque das enxadas, ou por pura coincidência, acordei. Ouvindo os pequenos gritos do metal na pedra, animado como criança, apressei a me vestir, chinelos nos pés, corri até o portão. Silenciosa e respeitosamente, eu aplaudi.
Vão calados, uma dezena de homens. Negros, porque escura é a noite. Negros, porque tal como escravos de correntes ao pescoço, trabalham sem conversar. Homens diferentes, uniformizados pela roupa verde de faixas florescentes e pelo silêncio. O cortejo segue.
Os homens da trupe andam com a mesma face contida dos trabalhadores de túmulos, que impassíveis cimentam o morto numa pequena parede do esquecimento. Trabalham com o mesmo respeito pelo sono alheio - aquele eterno, esse cotidiano.
Enquanto dormem atrás das janelas os cidadãos de bem, metade da trupe mórbida bate as enxadas na guia das calçadas e mata as jovens ervas que crescem ali. A outra metade, leva vassouras e arremata o serviço apagando os próprios vestígios, escondendo em sacos pretos as marcas da passagem desse circo de suor.
Assim, na manhã seguinte, perdida a luz da lua, o cidadão de bem não nota que algo mudou. Talvez, inconsciente na pressa, sinta algo mais organizado no quadro repetido da mesma rua em que sempre dorme e sempre acorda, mas jamais capaz de dizer que o estranho circo tímido tenha feito sua passagem.
Só que hoje eu acordei. Guiado pelo batuque das enxadas, ou por pura coincidência, acordei. Ouvindo os pequenos gritos do metal na pedra, animado como criança, apressei a me vestir, chinelos nos pés, corri até o portão. Silenciosa e respeitosamente, eu aplaudi.
Quem somos nós e de onde viemos...
Minha mãe é todas as mulheres da minha vida.
Minha avó, todo o sofrimento calado do mundo.
E eu sou todo o mal masculino das eras, os puxões de cabelo e a imposição
Eu sou a insegurança transformada em violência.
Minha avó, todo o sofrimento calado do mundo.
E eu sou todo o mal masculino das eras, os puxões de cabelo e a imposição
Eu sou a insegurança transformada em violência.
5.8.11
Recado ao Richard
Escuta Richard Dawkins... se tu quer saber o que é que define a pós-modernidade, eu te digo.
É essa falta de coragem de fazer o que dá na telha. É essa mania horrorosa de ser bem comportado que a minha geração - a crescida ou nascida nos anos 90 - pegou no ar condicionado e na água de garrafinha.
A gente passou duas décadas ouvindo dizer que os comunistas estavam errados, que os hippies morreram de overdose, os viados de aids e os punks de tédio. Os pais da gente, desiludidos e assustados, criaram uma geração de babacas. Por medo das cagadas que fizeram, mataram nosso espírito de se arriscar.
Se os filmes dos anos 80 estivessem certos e 1997 fosse um ano apocalíptico sujo e perigoso, cheio de escombros e poluição, juro que as coisas seriam melhores. Mas nós crescemos confortáveis no ar condicionado, com sabonete bactericida, protegidos e amados. Fomos embrulhados em magipack, monitorados por bip e depois celular. E por isso não descobrimos nada, só aprendemos. E aprender o que te ensinam tem o defeito de matar a sua criatividade.
A nossa geração tá levando ao ápice a cultura do medo. Os jovens dos anos 70 fugiam da casa dos pais pra usar drogas, nossa geração usa drogas escondida no banheiro da escola (quando usa). Somos a geração que abre mão dos seus sonhos em nome da estabilidade financeira com aceitação social. Não é que não tenhamos sonhos, é só que aprendemos que eles são impossíveis.
Por isso nossas bandas são chatas, nossas roupas caretas, nossas festas bobinhas e nossa alegria banal.
Perdemos a coragem de ousar e agora nem sabemos mais como fazer. Estamos com 20 ou 30 anos, na faculdade ou diplomados e - se não somos babacas o suficente pra já estarmos casados e com filhos, reproduzindo a maldita família pequeno burguesa que a juventude do século XX se esfolou pra tentar matar - estamos perdidos, olhando um pra cara do outro, enchendo a cara de cerveja e pensando em como seria bom se alguma coisa acontecesse.
É claro que eu to falando da classe média ou daquele setorzinho filho de trabalhador que conseguiu estudar um pouco mais pra ter alguma consciência. Pra grande maioria, como sempre foi, é mais do mesmo. A diferença agora, é que agora, pra nós também é mais do mesmo e por não cumprirmos nosso papel de chacoalhar a realidade, condenamos o mundo inteiro a esse oceano de chatisse hipocundríaca light clean, de revisões ortográficas, protestos na calçada, sexo seguro e planos pro futuro. Estamos afundando o mundo num mar de nada.
Pós-modernidade é essa mania de ser certinho, pacifista ou cagador de regra, acadêmico ou pai de família, baladeiro e babaca. No fim das contas tudo um bando de bosta. E o que fazer então? Bom, se você tem que me perguntar o que fazer, só tá comprovando o que eu acabei de dizer.
31.7.11
O cheiro do ralo: dura vida
(texto originalmente publicado no jornal Palavra Operária em abril de 2007, quando do lançamento do filme. Atualizado para republicação aqui)
A VIDA É DURA! Essa é a frase que Lourenço repete cotidianamente para seus clientes. Lourenço é um comprador de peças usadas e diz isso para justificar aos clientes as injustiças que ele próprio comete. Falo aqui da personagem principal interpretada por Selton Melo no filme O Cheiro do Ralo.
O roteiro, baseado em livro com o mesmo nome do filme, esmiúça a tendência de reduzir nossas paixões, nossas relações, nossos objetivos e nossa vida, em coisas. Lourenço, não ama ninguém. Ele ama a bunda, que por um acaso está no corpo de uma garçonete cujo nome ele não consegue, e sequer tenta, pronunciar. Em seu cotidiano, que acompanhamos preenchido de um tédio repetitivo, Lourenço recebe gente falida, decadente, em busca de algum dinheiro pelos objetos mais queridos e encontram um comprador cruel que usa seu pequeno poder para humilhar e diminuir quem precisa de ajuda. “Hoje eu sou mais eu” , pensa Lourenço enquanto dispensa mais um cliente, carregando pela enésima vez uma pesada peça que lhe curva as costas.
Nessa jornada cotidiana, assistindo a quase total ausência de humanidade em Lourenço, às gargalhadas nervosas, um mal estar preenche o espectador. Se reconhecer nas mais sórdidas observações de Lourenço, em seus desejos mais vazios de conteúdo, desperta uma reflexão profunda sobre nossas relações com as pessoas e coisas em nosso próprio dia-a-dia. Talvez esse seja o maior mérito de O Cheiro do Ralo. Uma comédia que, no barco das gargalhadas maldosas, leva o espectador a um tortuoso e difícil trajeto, lembrando-nos da facilidade em amar as coisas e das dificuldades em se aproximar das pessoas que nos cercam.
Uma vida sem cor
Rompendo com os traçados sombrios à tinta nanquim de seu último filme, o diretor Heitor Dhalia, opta em O Cheiro do Ralo por tons pastéis e cores desbotadas, transmitindo com fidelidade a desimportância de tudo que se passa na vida de Lourenço. A câmera, quase sempre dentro do olhar das personagens, enfoca os pequenos detalhes medíocres. As músicas, sempre com um tom de desleixo e as interpretações, bastante livres é verdade, trazem uma linha comum de não irem aos extremos emocionais dos dramalhões, tão conhecidos nas novelas globais. Tudo na estética ”do cheiro" remete a um cotidiano sem sobressaltos, a uma repetição sem novidades, em que as mudanças quase não acontecem, e quando acontecem, já não importam mais.
A interpretação de Selton Melo é impecável. Lourenço, em sua mais pura escrotidão, não fica irreal e não se torna um vilão novelesco. Ao contrário, a armadilha do filme é justamente o carisma que Selton imprime na personagem, sem o qual, seria fácil demais sair do cinema tranqüilo. O Lourenço que nos apresenta é um pouco de nós, o pior de nós, aquilo não que queremos ser. Por isso rimos de nós mesmos e choramos com nossa desgraça.
O olho de quem vê
Há no roteiro um niilismo que pode levar os mais despreparados a um beco sem saída na reflexão. A quem escreve este texto, ciente de que a decadência na vida de Lourenço é um aspecto dos mais feios da decadência do capitalismo, que tira o sentido e aliena a todas as coisas, o filme serve para repensar a nós mesmos e o mundo que nos cerca. Algo da tragédia de Lourenço deve acompanhar o espectador nos dias posteriores ao filme e talvez torne os nossos olhos um pouco mais atentos ao cotidiano.
A VIDA É DURA! Essa é a frase que Lourenço repete cotidianamente para seus clientes. Lourenço é um comprador de peças usadas e diz isso para justificar aos clientes as injustiças que ele próprio comete. Falo aqui da personagem principal interpretada por Selton Melo no filme O Cheiro do Ralo.
O roteiro, baseado em livro com o mesmo nome do filme, esmiúça a tendência de reduzir nossas paixões, nossas relações, nossos objetivos e nossa vida, em coisas. Lourenço, não ama ninguém. Ele ama a bunda, que por um acaso está no corpo de uma garçonete cujo nome ele não consegue, e sequer tenta, pronunciar. Em seu cotidiano, que acompanhamos preenchido de um tédio repetitivo, Lourenço recebe gente falida, decadente, em busca de algum dinheiro pelos objetos mais queridos e encontram um comprador cruel que usa seu pequeno poder para humilhar e diminuir quem precisa de ajuda. “Hoje eu sou mais eu” , pensa Lourenço enquanto dispensa mais um cliente, carregando pela enésima vez uma pesada peça que lhe curva as costas.
Nessa jornada cotidiana, assistindo a quase total ausência de humanidade em Lourenço, às gargalhadas nervosas, um mal estar preenche o espectador. Se reconhecer nas mais sórdidas observações de Lourenço, em seus desejos mais vazios de conteúdo, desperta uma reflexão profunda sobre nossas relações com as pessoas e coisas em nosso próprio dia-a-dia. Talvez esse seja o maior mérito de O Cheiro do Ralo. Uma comédia que, no barco das gargalhadas maldosas, leva o espectador a um tortuoso e difícil trajeto, lembrando-nos da facilidade em amar as coisas e das dificuldades em se aproximar das pessoas que nos cercam.
Uma vida sem cor
Rompendo com os traçados sombrios à tinta nanquim de seu último filme, o diretor Heitor Dhalia, opta em O Cheiro do Ralo por tons pastéis e cores desbotadas, transmitindo com fidelidade a desimportância de tudo que se passa na vida de Lourenço. A câmera, quase sempre dentro do olhar das personagens, enfoca os pequenos detalhes medíocres. As músicas, sempre com um tom de desleixo e as interpretações, bastante livres é verdade, trazem uma linha comum de não irem aos extremos emocionais dos dramalhões, tão conhecidos nas novelas globais. Tudo na estética ”do cheiro" remete a um cotidiano sem sobressaltos, a uma repetição sem novidades, em que as mudanças quase não acontecem, e quando acontecem, já não importam mais.
A interpretação de Selton Melo é impecável. Lourenço, em sua mais pura escrotidão, não fica irreal e não se torna um vilão novelesco. Ao contrário, a armadilha do filme é justamente o carisma que Selton imprime na personagem, sem o qual, seria fácil demais sair do cinema tranqüilo. O Lourenço que nos apresenta é um pouco de nós, o pior de nós, aquilo não que queremos ser. Por isso rimos de nós mesmos e choramos com nossa desgraça.
O olho de quem vê
Há no roteiro um niilismo que pode levar os mais despreparados a um beco sem saída na reflexão. A quem escreve este texto, ciente de que a decadência na vida de Lourenço é um aspecto dos mais feios da decadência do capitalismo, que tira o sentido e aliena a todas as coisas, o filme serve para repensar a nós mesmos e o mundo que nos cerca. Algo da tragédia de Lourenço deve acompanhar o espectador nos dias posteriores ao filme e talvez torne os nossos olhos um pouco mais atentos ao cotidiano.
2.7.11
Amor e dor
Salivou. Mordeu os lábios. Um frio na boca do estômago quando ela passou.
Eram cabelos escuros e lisos, soltos na altura dos ombros, uns fios grudados no suor das têmporas, que só realçavam a ginga das mechas soltas. O pescoço esguio à mostra, conduzindo ombros largos até uma nuca salpicada de calor. Costas fortes a cintura definida. O sapatinho baixo dando um ar decidido e sedutor ao andar. Belos tornozelos. Panturrilhas curvas que iam se esconder sob a barra amarela do vestido.
Seguia-a com o olhar. Encantadíssimo. Apaixonado.
Passou a segui-la, agora, com o corpo todo. Iam pelo pequeno caminho que estreitava em meio ao mato. Cada vez mais escuro, conforme a noite caía. Percebendo-se seguida, ela olhou pra trás uma ou duas vezes. Pareceu que sorria. Sim. Ela sorria. Convidava.
Apertou o passo e ela também. Acelerando, ela ficava ainda mais sexy. Rebolava mais naquele jogo de gato e rato. Provocava mais. Ele imaginava já as texturas e os cheiros do encontro e sabia que logo à frente, poderia cortar caminho e surpreendê-la.
Quando viu o homem grande surgir na sua frente, o corpo reagiu, tomou ar para gritar, mas veio uma mão forte e áspera sobre os lábios, apertando-lhe a cara. As pernas grandes dele enlaçaram as dela e numa rasteira ágil botou o pequeno corpo deitado ao chão, costas na terra e um vulto másculo sobre ela toda.
Ele conhecia bem aquele canto de mato. Eram ali invisíveis pra quem passasse pelo caminho. Resolvido racionalmente, não via mais nada, era só desejo animal. Trabalhava duro para conter o pequeno corpo que relutava em dar acesso ao meio das coxas grossas, agora expostas, vestido erguido. Enquanto uma das mãos apalpava as pernas quentes e a pélvis lisa, a outra permanecia firme tapando a boca e forçando a nuca contra o chão.
Olhos nos olhos, ele via os dela logo acima de seus dedos, arregalados, assustados, lacrimejantes. Ela se consumia no esforço de se debater e tentar gritar, agitava o corpo, contorcia, mas estava sob domínio de mãos fortes. Numa bela dança, gotas lentas corriam dos olhos dela, pretejavam na maquiagem e seguiam a silhueta dos dedos dele até o chão.
Com os joelhos ele começava a vencer a resistência e já uma de suas pernas estava entre as dela. A outra seria a chave para abrí-la por completo. Que luta! Ela resistia bravamente. Ele decidiu ir adiante e, tirando por um segundo a mão do rosto dela, deu com a outra um tapa sonoro. O rosto bonito balançou rápido para um lado e para o outro, despejando na grama cuspe e sangue. Por alguns segundos, ela fechou os olhos e o corpo inteiro amolecido se entregou a ele.
Quando voltava a si, ainda confusa, via o ir e vir repetido de um vulto sorridente. Os ouvidos voltando num apito começavam a distinguir sons entre grunhidos e gemidos graves. Na boca, o gosto ferroso de sangue e cálcio, algum dente que se partira. Por fim, lentamente, o tato percebia a facada do grosso e roliço volume que lhe penetrava o abdomen com força e vigor. As carnes do ventre se afastavam para o homem que a possuía com paixão. Mesmo com o pau dentro dela, o homem grande ainda estava cara a cara. Tinha no rosto um sorriso intenso e babava sobre os seios dela enquanto cavalgava.
Ela voltou a se debater. Pensou em empurrá-lo com as pernas, mas estava ainda muito fraca para aquela massa tão bruta. As mãos ainda iam presas. Uma pela mão dele, a outra retorcida entre as próprias costas e o chão. Tentou puxar o ar para gritar, mas era de tal potência o impacto de cada investida do quadril do macho que lhe tirava a força do diafragma, botava fora o ar antes que pudesse articular um grito definido.
Apenas um quase som, agudo, como algo que pretende tornar-se um grito despertou o homem e fez-lhe meter a palma da mão suja sobre a boca dela outra vez. Estava todo no paraíso e sentia o carinho morno da buceta dela apertando-lhe o pau. Colocava mais e mais força no cavalgar e ela, submissa, não reclamava, nada dizia. Devia estar sorrindo sob a mão.
Na boca, ela experimentava suor, sujeira e sangue. Mal podia respirar, menos ainda gritar e sequer pensava agora em se mexer. Resignava-se a manter o corpo rijo na tentativa de dificultar o zig zag do coito. Mas sentia-se cada vez mais penetrada e atingida em lugares reconditos. Ele a tocava inteira, cada parte da pele coberta pelos poros dele. Suores se encontrando, misturados nas barrigas, nos peitos, no rosto e na mão, nas ancas, nas coxas.
Ele viu lágrimas. Ainda não tinha notado. Ou tinha. Mas agora via as lágrimas. Ela não estava gostando. Não estava. Mas ele estava. Quis parar. Não parou. Quis gritar para que ela parasse de chorar. Mas não gritou. Estava quase gozando. Começou também a chorar. De prazer e de dó. Chorou sobre ela. Sorria também. Ia gozar, estava quase. Tapou nela também o nariz. Acelerou o quadril. Estocava firme e forte, arrastando e esfolando o pequeno corpo na terra. Ela olhava para ele. Olhos enormes e fixos. Achou que ela ia também gozar. E gozou forte, dentro dela. Uma torrente enorme de sensações e prazer sem endereço no cérebro.
Um silêncio longo. Ninguém passava na estrada e o vento da noite secava o suor na pele. A respiração foi voltando devagar ao ritmo normal.
Por fim, ele se levantou. Pôs as calças no lugar. Olhou para o pequeno corpo no chão, a mão ainda atrás das costas. A porra dele escorrendo pela terra. Agora ela parecia bem menos atraente, sem reação, fria. Tentou olhar outra vez para aqueles lindos olhos arregalados que fitavam o céu e se encantar como antes, mas não funcionou. As linhas pretas das lágrimas maquiavam as bochecas. Linda, mas tão fria. Ele caminhou para longe.
--------------------
Ele foi achado dias depois. A polícia achou, na verdade. Estava num motel não muito longe do bairro.
Na porta, uma turba de umas sessenta pessoas. Era também um fim de tarde.
O policial que liderava não quis enfrentar problema por causa de um bosta como aquele. Soltou o cara sem as algemas no meio da multidão e descarregou uma lata de spray de pimenta na parede...
O filho da puta nem resistiu. Tomou a primeira paulada na cara e caiu de joelhos no chão. Tomou outra e outra. Todos sentíamos o direito de tirar um pouco de sangue, quebrar um osso que fosse. Conhecíamos a coitada. Paus, pedras, pedaços de ferro. Em menos de um minuto a cabeça dele abriu no asfalto. Correu um líquido grosso, vermelho. Pena que aí ele não tinha mais cara. Era tudo uma massa um pouco disforme. E foi só aí que eu consegui dar um chute, porque a imagem desfigurada já afastava os menos decididos.
Achei um espaço pro impulso e biquei no lugar onde era a boca. Pensei que mesmo àquela altura, era capaz de o cérebro estar vivo e ele ainda sentir algo. Queria dar um chute bem na boca. E dei. Voaram uns pedaços de dente e um esguicho de sangue por trás.
A coisa toda foi menos que um minuto. Aí os policiais atiraram pro alto, dois tiros. O pessoal entendeu. Recuou. Mas não tinha tensão no ar, tinha uma sensação confusa de liberdade e mal estar. Justiça, eu acho.
No chão o cara ainda tinha uns trimiliques, como rabo de lagartixa cortado. O policial deu a última paulada, bem na parte de traz da cabeça. Coisa de profissional que fez as tremedeiras pararem na hora. Pegaram o corpo, meteram na parte de trás da viatura e partiram pro "socorro".
O sol ia se pondo. Sem falar nada, as pessoas foram se afastando, pequenos grupos saíram pra cá e pra lá. Na maioria em silêncio. Não é o tipo de coisa de que se fala. Só algumas senhoras soltando aquele indefinido "que horror!". O líquido grosso ficou lá no chão. Escorreu pra valeta, pro bueiro e foi embora pro esgoto. Parecia chocolate.
Eram cabelos escuros e lisos, soltos na altura dos ombros, uns fios grudados no suor das têmporas, que só realçavam a ginga das mechas soltas. O pescoço esguio à mostra, conduzindo ombros largos até uma nuca salpicada de calor. Costas fortes a cintura definida. O sapatinho baixo dando um ar decidido e sedutor ao andar. Belos tornozelos. Panturrilhas curvas que iam se esconder sob a barra amarela do vestido.
Seguia-a com o olhar. Encantadíssimo. Apaixonado.
Passou a segui-la, agora, com o corpo todo. Iam pelo pequeno caminho que estreitava em meio ao mato. Cada vez mais escuro, conforme a noite caía. Percebendo-se seguida, ela olhou pra trás uma ou duas vezes. Pareceu que sorria. Sim. Ela sorria. Convidava.
Apertou o passo e ela também. Acelerando, ela ficava ainda mais sexy. Rebolava mais naquele jogo de gato e rato. Provocava mais. Ele imaginava já as texturas e os cheiros do encontro e sabia que logo à frente, poderia cortar caminho e surpreendê-la.
Quando viu o homem grande surgir na sua frente, o corpo reagiu, tomou ar para gritar, mas veio uma mão forte e áspera sobre os lábios, apertando-lhe a cara. As pernas grandes dele enlaçaram as dela e numa rasteira ágil botou o pequeno corpo deitado ao chão, costas na terra e um vulto másculo sobre ela toda.
Ele conhecia bem aquele canto de mato. Eram ali invisíveis pra quem passasse pelo caminho. Resolvido racionalmente, não via mais nada, era só desejo animal. Trabalhava duro para conter o pequeno corpo que relutava em dar acesso ao meio das coxas grossas, agora expostas, vestido erguido. Enquanto uma das mãos apalpava as pernas quentes e a pélvis lisa, a outra permanecia firme tapando a boca e forçando a nuca contra o chão.
Olhos nos olhos, ele via os dela logo acima de seus dedos, arregalados, assustados, lacrimejantes. Ela se consumia no esforço de se debater e tentar gritar, agitava o corpo, contorcia, mas estava sob domínio de mãos fortes. Numa bela dança, gotas lentas corriam dos olhos dela, pretejavam na maquiagem e seguiam a silhueta dos dedos dele até o chão.
Com os joelhos ele começava a vencer a resistência e já uma de suas pernas estava entre as dela. A outra seria a chave para abrí-la por completo. Que luta! Ela resistia bravamente. Ele decidiu ir adiante e, tirando por um segundo a mão do rosto dela, deu com a outra um tapa sonoro. O rosto bonito balançou rápido para um lado e para o outro, despejando na grama cuspe e sangue. Por alguns segundos, ela fechou os olhos e o corpo inteiro amolecido se entregou a ele.
Quando voltava a si, ainda confusa, via o ir e vir repetido de um vulto sorridente. Os ouvidos voltando num apito começavam a distinguir sons entre grunhidos e gemidos graves. Na boca, o gosto ferroso de sangue e cálcio, algum dente que se partira. Por fim, lentamente, o tato percebia a facada do grosso e roliço volume que lhe penetrava o abdomen com força e vigor. As carnes do ventre se afastavam para o homem que a possuía com paixão. Mesmo com o pau dentro dela, o homem grande ainda estava cara a cara. Tinha no rosto um sorriso intenso e babava sobre os seios dela enquanto cavalgava.
Ela voltou a se debater. Pensou em empurrá-lo com as pernas, mas estava ainda muito fraca para aquela massa tão bruta. As mãos ainda iam presas. Uma pela mão dele, a outra retorcida entre as próprias costas e o chão. Tentou puxar o ar para gritar, mas era de tal potência o impacto de cada investida do quadril do macho que lhe tirava a força do diafragma, botava fora o ar antes que pudesse articular um grito definido.
Apenas um quase som, agudo, como algo que pretende tornar-se um grito despertou o homem e fez-lhe meter a palma da mão suja sobre a boca dela outra vez. Estava todo no paraíso e sentia o carinho morno da buceta dela apertando-lhe o pau. Colocava mais e mais força no cavalgar e ela, submissa, não reclamava, nada dizia. Devia estar sorrindo sob a mão.
Na boca, ela experimentava suor, sujeira e sangue. Mal podia respirar, menos ainda gritar e sequer pensava agora em se mexer. Resignava-se a manter o corpo rijo na tentativa de dificultar o zig zag do coito. Mas sentia-se cada vez mais penetrada e atingida em lugares reconditos. Ele a tocava inteira, cada parte da pele coberta pelos poros dele. Suores se encontrando, misturados nas barrigas, nos peitos, no rosto e na mão, nas ancas, nas coxas.
Ele viu lágrimas. Ainda não tinha notado. Ou tinha. Mas agora via as lágrimas. Ela não estava gostando. Não estava. Mas ele estava. Quis parar. Não parou. Quis gritar para que ela parasse de chorar. Mas não gritou. Estava quase gozando. Começou também a chorar. De prazer e de dó. Chorou sobre ela. Sorria também. Ia gozar, estava quase. Tapou nela também o nariz. Acelerou o quadril. Estocava firme e forte, arrastando e esfolando o pequeno corpo na terra. Ela olhava para ele. Olhos enormes e fixos. Achou que ela ia também gozar. E gozou forte, dentro dela. Uma torrente enorme de sensações e prazer sem endereço no cérebro.
Um silêncio longo. Ninguém passava na estrada e o vento da noite secava o suor na pele. A respiração foi voltando devagar ao ritmo normal.
Por fim, ele se levantou. Pôs as calças no lugar. Olhou para o pequeno corpo no chão, a mão ainda atrás das costas. A porra dele escorrendo pela terra. Agora ela parecia bem menos atraente, sem reação, fria. Tentou olhar outra vez para aqueles lindos olhos arregalados que fitavam o céu e se encantar como antes, mas não funcionou. As linhas pretas das lágrimas maquiavam as bochecas. Linda, mas tão fria. Ele caminhou para longe.
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Ele foi achado dias depois. A polícia achou, na verdade. Estava num motel não muito longe do bairro.
Na porta, uma turba de umas sessenta pessoas. Era também um fim de tarde.
O policial que liderava não quis enfrentar problema por causa de um bosta como aquele. Soltou o cara sem as algemas no meio da multidão e descarregou uma lata de spray de pimenta na parede...
O filho da puta nem resistiu. Tomou a primeira paulada na cara e caiu de joelhos no chão. Tomou outra e outra. Todos sentíamos o direito de tirar um pouco de sangue, quebrar um osso que fosse. Conhecíamos a coitada. Paus, pedras, pedaços de ferro. Em menos de um minuto a cabeça dele abriu no asfalto. Correu um líquido grosso, vermelho. Pena que aí ele não tinha mais cara. Era tudo uma massa um pouco disforme. E foi só aí que eu consegui dar um chute, porque a imagem desfigurada já afastava os menos decididos.
Achei um espaço pro impulso e biquei no lugar onde era a boca. Pensei que mesmo àquela altura, era capaz de o cérebro estar vivo e ele ainda sentir algo. Queria dar um chute bem na boca. E dei. Voaram uns pedaços de dente e um esguicho de sangue por trás.
A coisa toda foi menos que um minuto. Aí os policiais atiraram pro alto, dois tiros. O pessoal entendeu. Recuou. Mas não tinha tensão no ar, tinha uma sensação confusa de liberdade e mal estar. Justiça, eu acho.
No chão o cara ainda tinha uns trimiliques, como rabo de lagartixa cortado. O policial deu a última paulada, bem na parte de traz da cabeça. Coisa de profissional que fez as tremedeiras pararem na hora. Pegaram o corpo, meteram na parte de trás da viatura e partiram pro "socorro".
O sol ia se pondo. Sem falar nada, as pessoas foram se afastando, pequenos grupos saíram pra cá e pra lá. Na maioria em silêncio. Não é o tipo de coisa de que se fala. Só algumas senhoras soltando aquele indefinido "que horror!". O líquido grosso ficou lá no chão. Escorreu pra valeta, pro bueiro e foi embora pro esgoto. Parecia chocolate.
15.6.11
um vazio
voando a bala do cano da arma girando zune o ar da cidade moendo entra no peito do homem roda na carne enquanto repuxa arranca nervos dos ossos estoura artérias vaza sangue queima o ar no pulmão furado.
Na mente do cara uma dor. No grito afogado um adeus. Na casa dele um vazio.
Na mente do cara uma dor. No grito afogado um adeus. Na casa dele um vazio.
13.4.11
alegria acorda
Uma batida.
Repetida.
Acelerada.
Ela toca.
O tempo todo.
Em todos os lugares.
É o país da alegria.
Cerveja e carnaval.
Festa e putaria.
Re-mi-xa-gem.
Batendo os sentimentos humanos
na piscina amarela da alegria.
Amor, dor, tristeza, solidão e perda,
curiosidade, raiva, revolta e liberdade
tudo moído em pasta de alegria.
Vai pra festa.
Pula canta dança beija grita mija trepa!
Cheira o pó da alegria.
Alegria cega, surda e muda.
Alegria entorpecida.
No dia seguinte: esquece.
Esquece a vergonha de não ser feliz.
Só a alegria é permitida
Só o sorriso bobo de quem sabe que a vida poderia ser mais.
Só a pupila dilatada do olhar vazio de quem sabe que amanhã acorda.
A manhã. A corda.
Repetida.
Acelerada.
Ela toca.
O tempo todo.
Em todos os lugares.
É o país da alegria.
Cerveja e carnaval.
Festa e putaria.
Re-mi-xa-gem.
Batendo os sentimentos humanos
na piscina amarela da alegria.
Amor, dor, tristeza, solidão e perda,
curiosidade, raiva, revolta e liberdade
tudo moído em pasta de alegria.
Vai pra festa.
Pula canta dança beija grita mija trepa!
Cheira o pó da alegria.
Alegria cega, surda e muda.
Alegria entorpecida.
No dia seguinte: esquece.
Esquece a vergonha de não ser feliz.
Só a alegria é permitida
Só o sorriso bobo de quem sabe que a vida poderia ser mais.
Só a pupila dilatada do olhar vazio de quem sabe que amanhã acorda.
A manhã. A corda.
28.3.11
Murmuro
São da geração contraste.
Janta no bandejão imundo
com edêmica tendência para a cisma
Ofegante, rancorosa
declamando pimenta, é algoz:
- Pardon! Esse corpo não me é digno...
Deboche na cara da catarse
mas não é bagagem: é ataxia
Aprenderam a evitar
Por Laura Magalhães,
26.3.11
Grito
Somos a geração desastre.
Janta no restaurante do fim do mundo
com panorâmica pro cataclisma.
Ar pedante, voz melosa
reclamando do tempero do arroz,
- Garçom! Esse copo não está limpo...
Sorrimos na cara da catástrofe
mas não é coragem: é apatia
Desaprendemos a gritar
Janta no restaurante do fim do mundo
com panorâmica pro cataclisma.
Ar pedante, voz melosa
reclamando do tempero do arroz,
- Garçom! Esse copo não está limpo...
Sorrimos na cara da catástrofe
mas não é coragem: é apatia
Desaprendemos a gritar
28.2.11
Escola de guerra
Sentamo-nos frente a frente e falamos por poucos minutos.
Negociações.
Uma eternidade sem respirar.
Diafragma em riste e pulmão em choque.
Minhas mãos geladas.
Falamos de nós tão diretamente quanto pudemos, mas sem verdadeira proximidade.
Cada corpo um país: sem sexo, sem invasão, sem ocupação do alheio, estamos sempre infinitamente sós.
Nesses tempos sombrios, copiamos a política,
o amor tem que ser incerto, violento e confuso.
Nos tocamos tão pouco.
Mas nos olhamos, belicosa.mente.
Negociações.
Uma eternidade sem respirar.
Diafragma em riste e pulmão em choque.
Minhas mãos geladas.
Falamos de nós tão diretamente quanto pudemos, mas sem verdadeira proximidade.
Cada corpo um país: sem sexo, sem invasão, sem ocupação do alheio, estamos sempre infinitamente sós.
Nesses tempos sombrios, copiamos a política,
o amor tem que ser incerto, violento e confuso.
Nos tocamos tão pouco.
Mas nos olhamos, belicosa.mente.
25.2.11
Malabarizando
O artista de rua fere o gosto mediano dos carros comprados a prazo.
Seu espetáculo de rua é exatamente o cotidiano de quem está no volante: sorriso forçado, malabares em troca de migalhas, ostentando uma altivez que nem de longe condiz com sua verdadeira condição material. Mendigos se fazendo de burgueses. A mesma farsa, vestidos como não querem, fingindo ser o que não são.
Um absurdo! – eles pensam sem saber porque se sentem escrachados.
Torcem o nariz.
Fecham o vidro.
Negam o trocado.
Seu espetáculo de rua é exatamente o cotidiano de quem está no volante: sorriso forçado, malabares em troca de migalhas, ostentando uma altivez que nem de longe condiz com sua verdadeira condição material. Mendigos se fazendo de burgueses. A mesma farsa, vestidos como não querem, fingindo ser o que não são.
Um absurdo! – eles pensam sem saber porque se sentem escrachados.
Torcem o nariz.
Fecham o vidro.
Negam o trocado.
Na Kombi enferrujada caindo aos pedaços, dois homens negros sorriem para o show. Claro que se reconhecem no artista, na mesma árdua tarefa de ganhar o pão. Mas não acham nada humilhante, pois que não vivem de mentiras. Quando o artista passa, dão-lhe um pouco de dinheiro e muita atenção, agradecem e sorriem.
O farol abre. O artista tira da cara o sorriso forçado. Bochechas em câimbra. Os carros laminados partem afoitos em direção ao trabalho, ao cabeleireiro, à academia, carregando rostos maquiados sem expressão. A Kombi luta contra a idade, resmunga um pouco, mas também sai, seguindo de longe os reluzentes vidros filmados... E os dois homens lá dentro, são os únicos que ainda sorriem.
10.2.11
SP filha da puta
Tá errando quem pensa que a avenida paulista é a cidade. Aquele mar de arranha-céus é só uma paisagem ao sul para quem mora onde eu moro.
É aqui que é São Paulo.
É aqui que é São Paulo.
Com poucos ônibus, cheios de gente, cheios do suor matutino das putas que vendem o corpo sempre no mesmo lugar. Gente forçada a se dar a quem pague mais e melhor.
A cidade de verdade é cheia de morros. Sempre tem perto um barreiro, uma represa, um matagal, uma favela, uma boca de fumo e muitos bares. Bares em cada esquina. Meio padarias, meio restaurantes e inteiros centros culturais do brega e da pinga. Da honestidade parcial conquistada a duras doses de cana. Dos verdadeiros abraços de quem precisa muito de atenção.
São Paulo das putas putas, que atendem em casas sem placas e cheias de números. Do 175, do 643, do 128... lá onde vão meus amigos depois de se vender, para comprar amor de mentira e uma ilusão pra pele.
E depois essas putas - putas como nós mas que assumem a condição - voltam pras suas casas e seus filhos e suas famílias e suas novelas. Voltam pra seus estudos em faculdades que prostituem nosso dinheiro. Quase tantas faculdades como bares e puteiros. Onde se ensina de qualquer jeito para se formar prostitutas baratas diplomadas na arte de ser quase classe média.
Nós, filhos da cidade puta, somos sós. Porque quase não somos alguém, tão anulados pela rotina degradante de prostituir-nos com um sorriso no rosto, convencendo o patrão de que ele nos faz gozar.
São Paulo não é nossa cidade. É uma filha rebelde que nós construímos, tijolo por tijolo, página por página e dia a dia de suor cansado. Uma filha que também virou puta e se dá pra quem paga mais: os engravatados daquela paisagem ao sul. A cidade agora é deles. Essa filha das putas.
As sextas e sábados, nós nos encontramos. Nos morros, nos bares ou nas calçadas das casas. Nos abraçamos, falamos da vida que se leva e olhamos nossa filha, brilhando mais que o céu, se oferecendo a quem tudo nos tira.
De longe e secretamente nos orgulhamos dela e, mais secretamente ainda, almejamos o dia em que será nossa outra vez. Uma irmandade de putas com seus abraços verdadeiros e sorrisos pra dentro, trabalhando pelo dia de largar a profissão e aproveitar a vida, com a família, com a nossa filha, São Paulo.
De longe e secretamente nos orgulhamos dela e, mais secretamente ainda, almejamos o dia em que será nossa outra vez. Uma irmandade de putas com seus abraços verdadeiros e sorrisos pra dentro, trabalhando pelo dia de largar a profissão e aproveitar a vida, com a família, com a nossa filha, São Paulo.
27.4.09
O novo
Queremos o novo! Grita o jovem universitário de prancheta na mão. E lhe jogam o novo na cara todos os dias, em formato HDTV MTV Wireless.
O novo escandalo de corrupção, novo grande acidente, o maior até então. A nova novela das 8. O novo ídolo da próxima meia-hora.
A merda velha e pútrida embrulhada num novo celofane brilhante.
Resistamos ao novo! A burguesia despreza o que é velho porquê é perigoso aquele sonho que persiste há tantos anos. Reinventam a cada segundo apenas a máscara que esconde a mesma cara velha que nos oprime.
Eficazes, quero as idéias maduras melhoradas pelo tempo, a velha idéia sem máscara, sem embrulhos, sem imbrolios.
Nua, com suas cicatrizes, a velha idéia se expõe sem vergonha. Não precisa de botox, não precisa de plástica, não precisa da última moda em paris.
Essa velha perigosa é que dará à luz o novo tempo.
O novo escandalo de corrupção, novo grande acidente, o maior até então. A nova novela das 8. O novo ídolo da próxima meia-hora.
A merda velha e pútrida embrulhada num novo celofane brilhante.
Resistamos ao novo! A burguesia despreza o que é velho porquê é perigoso aquele sonho que persiste há tantos anos. Reinventam a cada segundo apenas a máscara que esconde a mesma cara velha que nos oprime.
Eficazes, quero as idéias maduras melhoradas pelo tempo, a velha idéia sem máscara, sem embrulhos, sem imbrolios.
Nua, com suas cicatrizes, a velha idéia se expõe sem vergonha. Não precisa de botox, não precisa de plástica, não precisa da última moda em paris.
Essa velha perigosa é que dará à luz o novo tempo.
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