14.7.14

A fome

Trocaram olhares entre grades.

Cada um em sua jaula espiava o olhar do outro em busca de, sem saber, um plano de fuga.

Por um tempo não ousaram falar mas, com os dias passando e a rotina da prisão se assentando nos corpos, foram se aproximando. Dormiam um pouco mais perto, comiam se entreolhando e, às vezes, se sorrindo, sempre com os traços negros tão simétricos das barras de ferro poluindo a visão.

Depois, viviam beirando a grade que separava os dois espaços cúbicos. Mesmo de costas, olhando ou fingindo olhar qualquer coisa na parede de lá, sentiam a presença do outro como a de um gêmeo que se esconde em útero alheio.

E foi num dia sem nada de especial, sem planejamento nem maldade, que se tocaram pelo espaço entre as barras.

Sem saber ao certo como a coisa começou, rápido se abraçavam entre os metais. Um agarre desengonçado e preso que proporcionava um encaixe há muito ansiado. No desconforto da cadeia gelada ficaram vermelhos. Mãos corriam pelas costas, pela pele que suava já e olhos nos olhos tão perto que se olhavam com medo de serem engolidos. Línguas nos dedos e na palma da mão, bocas nos ombros, nos rostos; o encaixe dos quadris e das cinturas e o beijo molhado e suculento de línguas famintas que se acabava na grade e com gosto de ferrugem antes mesmo de começar.


Ficaram assim por horas, com a grelha de ferro aprisionada entre um abraço de tesão puro. Choraram juntos sem se soltar. Trovejaram hipócritas contra a prisão que lhes impedia de amar – sem querer notar que não havia cárcere nem carcereiro: a chave estava bem ali, uma metade escondida em cada uma das bocas que se recusavam a juntar.

31.1.14

Linha Branca

Na era da funcionalidade, vivemos o amor eletrodoméstico.

No momento em que paramos de agradar as pessoas como promete o manual, somos descartados e, no nosso lugar, logo surge outro aparelho, mais moderno, comprado a prazo e já com data marcada para quebrar.

10.1.14

Paradoxo do Tempo

Ontem voltei no tempo. Me encontrei quando eu tinha vinte e um anos de idade.

Tentei me avisar que as pessoas vão gostar mais de mim se eu for honesto e aberto, não porque o eu de verdade é uma pessoa melhor mas porque pessoas de verdade são as únicas que se pode amar, com todos os defeitos e dificuldades.

Eu disse pra ele que é preciso olhar pra dentro e encarar a sua dor represada. Que guardar tanto ódio e tanta mágoa num canto obscuro de você não vai funcionar. Essa contenção sempre arrebenta e passa por cima da sua felicidade.

A impressão que fiquei é que ele sequer me entendeu direito. E lembrando de como eu era naquela época, imagino que seja difícil vislumbrar a possibilidade de ser feliz e amado expondo o que existia – e existe – dentro de mim. As personagens que eu criava pareciam tão mais atraentes e interessantes.

Percebi que talvez o paradoxo da viagem no tempo me impedisse de efetivamente mudar alguma coisa em mim mesmo. Se eu aprendesse instantaneamente aos vinte e um anos tudo o que sei agora, eu não teria passado pelas dificuldades, pelos erros e pelas descobertas que passei e não poderia estar lá para me contar isso tudo.

Mas sabendo o monstrinho que eu era, o quanto eu iria ferir os outros, pensei que poderia avisá-los: saiam de perto de mim. Esperem uns anos, lá na frente eu vou ser melhor, vou ser mais sábio e mais verdadeiro. Mas outra vez, foram essas pessoas que me fizeram crescer e se eu fugisse delas ou as fizesse fugir de mim, estaria pra sempre preso naquele mundo de ilusão que criei.

Então decidi que não havia nada a fazer a não ser ficar ao meu lado e ser o mais parceiro possível, apoiar-me nos momentos em que as descobertas doloridas chegarem e sempre me avisar de que o futuro é melhor e de que toda essa dor e essa dificuldade em aprender, vão me recompensar com juros.


Eu te(me) amo, imagem no espelho.

8.12.12

Prece

Sai de mim, exu-eu-mesmo!

18.11.12

Rios Negros

Ouvi a porta do banheiro se fechar com um clique suave. Era o único lugar protegido das paredes de vidro que cercavam o salão. O cheiro dela foi até lá, mas deixou um rastro de feromônios que me faziam queimar por dentro como um bicho. Imaginei a cena lá dentro. Ela aguardando por mim.

A realidade superou o sonho. Prostrada de cabeça baixa, os cabelos de cobre sobre o rosto e indo até os joelhos. Toquei de leve o seu queixo e a fiz olhar para os meu olhos. Logo meu pau entrava todo na boca carnuda e tocava o fundo suave e quente de uma garganta ávida.

As lágrimas corriam cheias de maquiagem e escorriam negras pelas bochechas. Um choro de prazer meu e dela. Quando eu não empurrava sua nuca contra meu tronco, ela mesma se apoiava em minhas coxas e auto-infligia o duvidoso castigo de se sufocar em mim.


Quando me senti satisfeito, empurrei a cabeça e o corpo dela pra longe. Observei por pouco tempo a cara infantil, sacana e feliz e mãos maduras que limpavam o rosto dos dois rios escuros que iam até o pescoço esguio e gostoso. Ali começava nossa história e não ia acabar facilmente.

16.11.12

Planos


A pele nua se arrepiava por inteiro.

Mesmo num dia tão quente, o vento era fresco. Especialmente na altura em que estaria o vigésimo terceiro andar do prédio, se não estivesse ali aquela carcaça abandonada de andares sem paredes. Era o fim da tarde e o por do sol se fazia em meio a nuvens de fumaça poluída, jogando sobre eles um banho laranja de luz.

Ele em pé à beira do precipício de andares de mortos, uma silhueta escura contra o sol, altivo e elegante, fumando um cigarro sobre um cenário de prédios e prédios que cobriam uma ampla vista da cidade.

Ela às vezes baixava os olhos e via as próprias pernas nuas, com pelos erguidos em resposta ao vento que lhe chegava pelas costas, vindo do escuro do leste que já anoitecia. A luz laranja marcava os poros abertos bem como a forma roliça das coxas sentadas numa cadeira, que lembrava muito as cadeiras do colégio. Descalça, ela tinha os pés apoiados pelas pontas sobre o chão sujo de cimento rústico e pelos tornozelos no ferro frio da cadeira. Olhou o próprio colo e os seios, grandes em comparação à cintura fina, também pintada pelo poente, e achou que seu corpo, se não era sempre bonito, hoje estava desejável. Sentiu que nessa noite, seria amada. E então a sombra dele se moveu sobre o corpo dela.

Ele vinha baforando a última nuvem de alcatrão, de calça e sapatos sociais e a camisa desmontada de quem sai cansado do trabalho. Parou com um olhar curioso deixando o abdomen de frente pra ela e com a mão fez uma carícia calma e forte nos cabelos vermelhos. Desceu pela nuca, pescoço e ombros. Seguia pelo corpo dela com a fluidez da água que procura caminhos para escoar, explorando todos os centímetros, mas também com o peso de algo mais opressivo, mais denso. Era como uma avalanche sobre a carne dela, e seguia sem medo e sem freios. A outra mão também veio, quente sobre a pele fria. Uma nova avalanche, firme, carinhosa e dominadora. A primeira já havia medido o tamanho de um seio e encaixado dedos por entre costelas. Agora seguia rumo ao ventre. A segunda segurava o maxilar e com o polegar navegava a boca, apertando lábios distorcidos.

Quando a digital quente e suada forçou a entrada e tocou dentes, ela instintivamente lançou a língua pra fora e, nem bem provou algum gosto, o mundo girou. O tapa foi forte e rápido. O rosto fervia e ainda guardava o formato da mão pesada. Ela sorriu... e compreendeu que era o momento de estar passiva e atenta.

A primeira mão nunca perdeu o ritmo, nem a força certa. Continuou seu passeio delicado e decidido pelo ventre e agora entre as coxas. A segunda, que voltara aos lábios e explorara dentes molhados – e agora obedientemente cerrados –, já descia e testava no pescoço um leve enforcar. Sem cordas nem correntes, ela se via presa à obediência que ele inspirava. A mão que ia entre as coxas a sentiu úmida e recuou rápida enquanto a outra trocou o pescoço pelos cabelos num puxão violento que a ergueu da cadeira. Enquanto a dor ainda gritava, uma língua enorme e macia invadiu a boca dela numa explosão de sentidos e confusão. Falta de ar.

Quando pode respirar de novo, estava de joelhos.

À frente ela via a cidade toda. As luzes das janelas de incontáveis prédios se acendiam e apenas uma fresta de sol ainda esperava pra desaparecer por trás do relevo. A voz grave surgiu baixa e quente no ouvido esquerdo.

“Em cada janela, uma chance de que estejam te vendo”

Conforme sentiu que o arfar da boca quente dele se afastava, ela se virou para encontrá-lo sentado na cadeira, com outro cigarro pendurado nos lábios. Nada foi dito e olhares se cruzaram longamente. A expressão quase fria o deixava ainda mais bonito.

Ela entendeu que devia acender o cigarro. Lentamente tocou nos bolsos da calça preta. A ponta de um dedo sentiu o pau duro enquanto migrava ao outro lado do corpo, ao outro bolso, para ali encontrar um isqueiro. Ela se ergueu, acendeu o cigarro com mãos trêmulas e sentiu os joelhos dançarem por sobre pequenas pedrinhas da construção. Ele tragou com gosto e permitiu a ela um banho em fumaça. Com um sorriso largo, ele se levantou, tomou-a pela trança rubra e andou em direção a um canto sem luz. Ela seguiu como pôde, puxada pelos cabelos, trôpega e ansiosa até ser largada e cair sentada no chão.

Estavam agora no escuro. E o som de correntes tilintava quando o aço frio tocou a pele agora quente e suada. Foi lenta, mas ritmada, a forma com que ele envolveu o corpo dela. Uma cruz de correntes sobre o abdomen que descia para enrolar as coxas e subia pelas costas, prendendo ali os braços e cruzando por fim sobre o pescoço, numa leve forca metálica, que a prendeu contra a coluna de concreto. Olhos arregalados, a expectativa da dor. E a dor veio, em tapas calmos e calculados. Ele batia em tempos precisos para interromper em pleno auge os sorrisos e as lágrimas que ela oferecia. A cada impacto, as correntes e o pequeno corpo tremiam. Como um batuque antigo, os tapas marcavam e davam o ritmo, ininterruptos, cada vez mais intensos e assim não demorou para que a dor desse lugar a um transe de êxtase. Sem espaço nem tempo. Os vultos do movimento dele eram lentos e lindos, como um balé de morte. O gosto de sangue, a boca cortada. O cheiro de suor e pele e concreto e cidade. O cheiro dele. Cada elo da corrente, cada pedaço quente de carne no rosto batido.

E então tudo parou. Houve um curto vazio no escuro até que ele meteu um pau duro e grosso na boca dela.

Acorrentada, à mercê dele para ser sufocada e usada à gosto. O gosto. Intercalando estocadas lentas e profundas com movimentos rápidos e violentos, ele se levou ao orgasmo e gozou em lábios e língua. Porra dele e sangue dela.

O corpo dele recuou dois passos para admirar a obra. Com as calças ainda abertas, seguras por uma mão enquanto a outra atendia aos cabelos caídos no rosto e ajudava à recobrar a total consciência de atos. Dali, ele sorria soturno mostrando dentes num facho de luz enquanto os olhos se perdiam no escuro. Aos poucos o coração dela retornava, a dor nos joelhos e no rosto e na garganta tomavam o espaço do transe de há pouco. As correntes agora já iam aquecidas e a noite parecia infernalmente quente. Havia suor em tudo. Ela se permitiu sorrir para ele, cansada e cúmplice. Ele retribuiu por alguns segundos. Fechou as calças e caminhou para o escuro.

Com um clique, as correntes se soltaram e ela foi de quatro ao chão. Logo ele estava agachado ao lado dela, ombros sob a barriga e por instantes ela pensou que voava. Sustentada pela força dele, enquanto era carregada de volta ao espaço iluminado onde ficava a cadeira, ela viu que a noite já ia alta e uma lua tímida saia do horizonte. Por quanto tempo estiveram ali?

Ela, que há pouco pensou estar tudo terminado, também se enganou ao pensar que voltaria à cadeira. Caminharam até a beira do precipício em que ele fumara vendo o sol se ir. O medo subiu sufocante pela garganta. Com ele parado no mais extremo da laje de concreto, o corpo dela estava mais que pela metade em pleno ar. Qualquer movimento significava morrer. O vento e o medo gelaram o suor na pele. Ele deu um passo atrás e a plantou em pé no mesmo ponto que ele antes ocupava. As pernas dela tremiam, mas os dois braços estavam travados por ele. Tão firmes que mesmo que ela quisesse, não poderia voar. O medo era um grande afrodisíaco: quando ele enterrou uma mão entre as pernas dela, ela estava mais úmida que em qualquer outro momento da noite. Saindo a mão, ele enterrou o pau grosso e também molhado dentro dela.

Domada, ela balançava de leve à beira da queda, vendo cada vez mais janelas acesas de onde tantas pessoas poderiam ver o que faziam, bastando apenas que olhassem. Tão bem presa pelos braços, tão livre no ar, entre o medo e o prazer.

Ele usou a mão livre para puxá-la outra vez pelos cabelos, agora soltos e suados. As mãos dele trouxeram a cabeça pra trás, o suficiente para que ele pudesse lamber o canto da boca dela e uma grande porção do rosto, deixando uma trilha de saliva fresca. No ouvido, outra vez, a voz grave e baixa e surpreendentemente calma.

“Agora você goza”

Ela obedeceu instantaneamente enquanto ele gozava dentro dela. Com o orgasmo, foi embora a força nos braços e pernas de ambos e faltou pouco para que caíssem no vazio. Mas ainda houve destreza para que se sentassem entrelaçados, encostados num grande tonel de metal. Ele ainda nas roupas sociais, mas com calças pelos tornozelos. Ela gloriosamente nua na noite da cidade.

Quando ele recostou nela a cabeça suada e deu um beijo delicado nos ombros, ela sentiu a barba se abrir em um sorriso doce sobre a pele, ela sabia que o jogo estava terminado. Virou a cabeça pra trás e se encontraram em um beijo de cansaço feliz, de amizade verdadeira e de uma vontade louca de um banho que precederia uma longa noite de conversas nalgum bar da iluminada cidade que se acalmava agora, alheia ao precipício dos amantes.

6.11.12

Mentiras


Estão um pouco bêbados e riem bastante. Se agarram, ela o coloca na parede, levanta a blusa. Estão se amassando com vontade. As roupas vão caindo, estão em arfantes. Ele abaixa as calças, as pernas dela em volta dele. Ele penetra com dificuldade. Duas estocadas. Ela sorri primeiro e logo sente dor.

Ela: Pára. Pára. Tá doendo.

Ele pára, tira devagar. Eles evitam se olhar. Ele passa a mão nos cabelos dela e vai pro banheiro.

Ela: Amanhã você vai lá?

Ele responde de lá.

Ele: Vou sim. Quer ir?
Ela: Acho que não. To cansada e amanhã vou estar numa ressaca louca.

Ouve o chuveiro abrir.

Ela: Amor. Da onde você conhece aquela moça?
Ele: Qual?
Ela: Aquela bonita de vestido verde. Não lembro o nome dela.
Ele: Ah. Ela estudou com meu irmão. Eles tavam dois anos atrás de mim no colégio.

Ela vai aos poucos começando a se masturbar. Sem estardalhaço, carinhosamente.

Ela: Hummmm. E quem pegou ela na época, você ou ele?
Ele: (rindo) Os dois acho. Mas ele não tenho certeza se conseguiu.
Ela: É. Você tem bom gosto pra mulher. Ela é linda. Aposto que ela te deixou o telefone.
Ele: Tá com ciúme, é?
Ela: Depende. Eu ganhei a aposta?

Agora o ritmo aumenta depressa.

Ele: Que aposta?!
Ela: Apostei que ela te deu o telefone dela na festa...

Ela está quase gozando.

Ele: Ah amor. Pára com isso. Claro que não deixou...

Frustrada, ela interrompe a masturbação. 

Ele: ... e se tivesse deixado eu ia te falar. Mas ela não é esse tipo de gente.
Ela: Ah tá. Você já tá acabando? Preciso desesperadamente do chuveiro.
Ele: To quase.

Ela pega toalhas, roupas de dormir. Senta na cama entediada. O chuveiro demora mas fecha. Ele sai se enxugando e carregando as roupas que tirou.

Ele: É todo seu.

Ela sorri amarelo. Pega as coisas dela e passa pro banho. Não se olham. Ele senta na cama e vasculha a calça. Ouve-se o chuveiro abrir e uma porta fecha, deixando passar só uma sombra dos sons do banheiro. Ele acha um pequeno papel no bolso. Retira, olha e pensa um tempo. Olha pro banheiro um pouco intrigado. Pega o telefone celular e transcreve um número do papel para a agenda do telefone, com um sorriso levemente maroto.