6.6.12

Ode do vagabundo

Quando meu computador de marca ruim comprado barato no mostruário de uma loja popular desliga impetuoso na minha cara, sem sequer me avisar antes que a tomada lhe está desconectada, eu sinto uma raiva muito especial.

Me lembro que é culpa da bateria velha e gasta pelo mostruário da loja e que eu tenho que lidar com esses pequenos engasgos cotidianos porque tudo que tenho é barato e usado e gasto pelos outros. Eu vivo, de certa maneira, dos restos de outras pessoas. Sou um refém da caridade alheia.

Caridade do meu chefe que se sente benfeitor por me permitir enganar os clientes dele em troca de uma porcentagem ínfima do que eles pagam para serem enganados. Caridade da minha avó que me ama por falta de opção melhor na vida e gasta o pouco dinheiro que tem com presentes que me mantém funcional: sapatos, meias, bolsas, camisas e um computador de marca ruim comprado barato no mostruário de uma loja popular.

Cresci em um bairro de trabalhadores numa família de gente que trabalhou desde cedo e fui encucado desde cedo no espírito de que o trabalho enobrece o homem e de que sem trabalho um homem não tem honra e de que honra e nobreza é poder pagar suas contas e comprar suas coisas. E mesmo que eu tenha outras contas do que possa ser honra e nobreza, no fundo me sinto diminuído e escorraçado por não usar o que sou para ganhar dinheiro e fazer girar a roda do sistema e dela catar as minhas migalhas para comprar um computador de marca boa com boas baterias.

E às vezes, quando me vejo onde estou, me bate essa de colocar uma gravata e querer arrumar um emprego decente e poder ter. Ter essas tantas coisas que anunciam por aí e que vejo outros tendo à custa de tanto suor e esforço ou às custas da pura sorte de ter nascido em berço de ouro. Em geral da sorte de ter nascido em berço de ouro.

Mas me nasce um terror tremendo quando me vejo lá no futuro, de camisa e gravata, com boas posses, enfurnado numa empresa de enganar gente, enganando gente, sendo gentil a quem me paga. Um horror que é o que mais me parece com morte, pois que é duas mortes: a morte do que eu sou e a morte do que eu posso vir a ser.

A ser pobre eu estou acostumado. A viver com pouco eu estou acostumado. A ser vítima da caridade alheia, não me acostumo nunca. Mas não estar acostumado é, no fim das contas, a única forma de estar vivo. E eu me prefiro vivo e descontente.

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