Ele chutou a garrafa com a raiva de um dia quente de trabalho e ela caiu impotente em meio aos trilhos.
Nós esperávamos entre ansiosos e distraídos um trem demorado demais no qual procuraríamos alguns centímetros quadrados que pudessem nos levar pra casa.
Estávamos todos cansados de um dia quente de trabalho, suor seco na pele. Todos vimos a garrafa ali, deitada vazia e abandonada na plataforma da estação. Todos cogitamos a possibilidade de afastá-la com um libertador chute de despojo, mandá-la como símbolo da nossa revolta, para longe dali. Mas a boa educação e o senso ecológico, embutidos à força por cima da nossa raiva social, paralisaram as pernas.
E quem de nós poderia repreender o recém chegado?
Vendo a garrafa por intermináveis minutos de espera, ninguém tomou a atitude civilizada de levá-la à lata de lixo. Ao invés, passamos o tempo nos distraindo com qualquer bobagem, enquanto o verde pet cintilante insistia em nos tirar a atenção da distração qualquer. Secretamente, todos desejávamos chutá-la, publicamente ninguém teve a coragem.
Chutar a garrafa para o meio dos trilhos, seria chutar nossa civilização. Sem civilização, que motivos teríamos para esperar aquele trem demorado sem quebrar a estação inteira? E porque nos apertaríamos no calor sufocante daquele vagão enferrujado sem colocar fogo na composição?
Mas aí ele chegou e fez a garrafa voar da plataforma, todos assistimos o vôo suave da pet até os dormentes do trilho. Respiramos fundo todos juntos. De alívio. De vergonha. Ele expulsou nosso dilema e tirou nossa chance de nos revoltarmos.
Então começa a chover. Encolhemo-nos contra a parede sob o curto avançado de cobertura que mal protege das gotas grossas e nos faz vítimas dos respingos menores.
O trem chega cortando a água. As portas se abrem e um bafo quente nos alcança. As pessoas se apertam. Somos todos gado. Na confusão do empurra-empurra, ele dá passagem a um casal que entra sem agradecer. Por último, ele entra, braços apoiados no vidro da porta. E no chão aqueles pés com a liberdade de mudar o mundo. A porta se fecha e ele olha pra fora. Olha pra mim. E o trem partiu.
(reescrito em 26/2/2011 - versão original pro lixo)
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